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BLOG MAR & DEFESA

A Formação dos Engenheiros Navais na Marinha do Brasil*

Azlim Noslide Simeão Teodorio**



Publicado no blog MAR & DEFESA em 10 de abril de 2023



* Excerto do artigo A Formação dos Engenheiros pelas Forças Armadas: A construção do capital intelectual da Indústria de Defesa brasileira, de autoria de Azlim Noslide Simeão Teodorio, publicado na Revista Marítima Brasileira, n. 10/12, out/dez 2022.


** O autor é Primeiro-Tenente (AA) da Marinha do Brasil. Exerce atualmente as funções de Ajudante da Assessoria Jurídica do Centro Tecnológico da Marinha no Rio de Janeiro. Encontra-se realizando Mestrado profissional em Estudos Marítimos pela Escola de Guerra Naval e especialização em Direito Marítimo e Portuário pela Maritime Law Academy.


OS CAMINHOS das indústrias militar e aeronáutica seguiram um curso um pouco diferente da indústria naval brasileira. Embora tenham recebido incentivos do governo federal, existiam duas vertentes bem definidas: a construção naval voltada aos navios de guerra e a construção naval voltada aos navios mercantes.


Sendo reconhecidamente o primeiro curso de Engenharia Naval no Brasil, o curso da Universidade de São Paulo (USP) ganhou a atenção das instâncias superiores de educação apenas em 1965, mas isto não impedia o seu devido funcionamento. Voltava-se sobremaneira aos propósitos da Marinha, contribuindo com seus oficiais formados e na formação dos professores da universidade.


Em 1959, os estaleiros do Rio de Janeiro estabeleceram um convênio com a Escola Nacional de Engenharia da então Universidade do Brasil (atual UFRJ), visando à formação de mão de obra para as demandas do setor produtivo. É possível notar um aparente distanciamento entre a indústria de navios mercantes e os navios de guerra: estes últimos terão sua construção concentrada no AMRJ. Ressalta-se que um investimento no setor já era previsto, com o plano de nacionalização da frota mercante.


Pela Marinha, foi realizado um convênio simultaneamente com o IPT-SP, que se localizava no mesmo sítio da USP. O IPT-SP permitiu dotar o Brasil de recursos e especialistas, bem como de instalações para experimentos em hidrodinâmica, fundamentais para os projetos de navios. É preciso que se entenda que o convênio com a USP era tão importante quanto o convênio com o IPT. Desta forma, ao tratar dos projetos desenvolvidos, estes devem ser entendidos como resultados da relação da Marinha com as duas instituições. No final da década de 1960 e início da década de 1970, são feitos altos investimentos tecnológicos e de ampliação das atividades navais, em virtude do crescimento econômico que o Brasil vivia, bem como dos programas da Marinha para o desenvolvimento de projetos de embarcações

militares. Seria estabelecida ainda uma parceria com a Petrobrás.


As primeiras linhas de pesquisa desenvolvidas pelo Departamento de Engenharia Naval foram formuladas em 1969, cerca de 12 anos após o início do convênio. A grande maioria dos professores de Engenharia Naval iniciava suas carreiras universitárias. Sendo assim, “elas foram uma diretriz para os primeiros cursos de pós-graduação e teses de mestrado”. O convênio produziu efeitos benéficos percebidos rapidamente. Graças aos recursos do governo federal, pelo Plano Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PNDCT), foram realizados alguns cursos de pós-graduação ministrados por professores visitantes estrangeiros. Alguns alunos de pós-graduação puderam ter dedicação integral, assim como houve a formação de alunos monitores. Elaboraram-se livros modernos, e foram comprados equipamentos e materiais. Construiu-se uma atmosfera intelectual que se renovava.


O contexto de investimentos na construção naval entre a década de 1960 e a de 1980 é complexo. O ápice de produtividade foi alcançada na década de 1970, quando foi lançado o primeiro Plano de Construções Navais (I PCN) com a previsão de encomenda e construção, nos estaleiros nacionais, de 116 embarcações de todos os tipos, e um investimento em torno de 1,2 bilhão de dólares. Em 1974, foi lançado o novo PCN (II PCN), graças ao sucesso do primeiro, com previsão de encomenda e construção de 765 embarcações e investimento de 3,3 bilhões de dólares.


Apesar dos pesados investimentos do governo federal na produção da indústria naval brasileira, a demanda estrangeira não tinha grande representatividade. Poucos países encomendaram navios aos estaleiros brasileiros, em especial navios cargueiros, que possuem em geral pouca demanda tecnológica. Ainda que os engenheiros da USP tivessem a garantia de emprego ao término do curso de Engenharia Naval, estes eram pouco demandados quanto ao know-how adquirido na universidade. Este distanciamento existente entre a demanda e a pesquisa corroborou para que o País não possuísse uma indústria de navipeças, ficando dependente de importações neste setor.


No campo da Marinha Mercante, os investimentos do governo quanto à indústria de construção naval estavam voltados para um crescimento intenso e rápido do setor. A preocupação do governo durante a década de 1960/70 era pragmática: sustentar o crescimento da Marinha Mercante brasileira para suprir a demanda do mercado interno, sem incentivar formas de exportação de navios e sem incentivar a capacitação tecnológica.


Podemos tratar dos projetos desenvolvidos no mesmo período pela Marinha, junto ao corpo técnico formado na USP, sob uma ótica diferente. O navio de guerra, por sua natureza, demanda conhecimento tecnológico superior. Seus componentes e sistemas devem estar à frente dos sistemas dos navios empregados no comércio. Em razão disso, a Marinha sempre necessitou de uma retaguarda técnica. Por este motivo, a Marinha continuou investindo na capacitação do corpo docente do Departamento de Engenharia da Epusp (DEN-Epusp) e da Divisão Naval da IPT (Dinav-IPT). Segundo o Almirante Engenheiro Naval Élcio de Sá Freitas, no seu livro A Busca da Grandeza,


"A partir de 1972, o DEN-Epusp e a Dinav-IPT passaram a receber anualmente dois professores ou engenheiros, quase sempre por iniciativa do ETCN-SP. Eles vinham do Massachusetts Institute of Technology, do Naval Ship Research and Development Center da USN, do Royal Naval Engineering College da Royal Navy, da Universidade de Yokohama, da Ishikawajima Heavy Industries e da Kawasaki Heavy Industries. Esse intercâmbio também era realizado em sentido inverso, graças ao envio de professores civis para aperfeiçoamento no exterior, apoiados pelo convênio Marinha-USP."


Ainda nesse período, foram criadas disciplinas especiais para os oficiais-alunos da Epusp que eram cursadas no período de férias e ministradas por oficiais do ETCN-SP. Estas disciplinas eram voltadas aos interesses da Força, como, por exemplo, Introdução à Análise de Estruturas de Submarinos. O interesse dos alunos pela Engenharia Naval aumentou no período, uma vez que a indústria crescia rapidamente. Os alunos civis realizam seus estágios obrigatórios no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro (AMRJ), o que era benéfico para a Força.


O ETCN, braço da Marinha no convênio, dedicou-se quase que exclusivamente ao ensino e à execução do convênio. Passou a se envolver em pesquisa e desenvolvimento a partir do PNDCT. Porém, ainda não havia desempenhado um papel mais importante: o de retaguarda técnica da engenharia da Marinha. Para o Almirante Freitas,


“A função da retaguarda técnica é estudar e resolver problemas existentes ou previsíveis cuja solução ainda não seja conhecida nos órgãos de direção, planejamento, projeto, produção, manutenção e reparo”.

Este papel seria desempenhado nos projetos encabeçados pela Marinha.


Alguns projetos de concepção e preliminar no Plano de Reaparelhamento da Marinha da década de 1970, no qual constavam vários navios-patrulha rápidos, foram desenvolvidos no ETCN-SP, sendo submetidos à Diretoria de Engenharia Naval (DEN). Isso atenderia às necessidades da Marinha, intensificaria o uso da pequena retaguarda técnica que já se formara e suscitaria temas para novos estudos e teses.


A Marinha construiu um plano de projeto e construção de navios. Estava prevista a construção das fragatas e corvetas, bem como a construção do Navio-Escola Brasil. A Força decidiu, em 1973, concentrar na USP a formação de todos os oficiais do Corpo de Engenheiros e Técnicos Navais. Foram organizadas iniciativas e parcerias para promover a pesquisa envolvendo o DEN-Epusp, a Dinav-IPT, o BNDES e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Estes programas foram de suma importância para a capacitação necessária ao projeto dos submarinos e de sistemas oceânicos para a Petrobrás. Foram necessárias alterações nos currículos para que se adequassem às necessidades impostas pelos projetos de alta complexidade tecnológica que a Marinha exigiria.


A Marinha se preparou para dar início a seu grande projeto: o Programa Decenal de Renovação dos Meios Flutuantes da Marinha de Guerra, em 1967. No ano de 1972, iniciou-se a construção das fragatas "Independência" e "União", da classe Niterói, no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, que substituiriam os navios da Segunda Guerra Mundial. Fazia parte do plano de modernização da Marinha, inaugurado no final do governo Castelo Branco, com apoio do ministro Roberto Campos. Era um salto tecnológico que a Marinha dava naquele momento. O projeto original era inglês, sendo empregados na construção muitos engenheiros navais formados na USP, incluindo civis. A construção da "Independência" foi concluída em 1979, e da "União" em 1980. Ainda foram construídos no Arsenal duas lanchas para transporte de passageiros e o Navio-Patrulha Fluvial Itaipu, para a Marinha do Paraguai.


Outros projetos foram desenvolvidos ainda na década de 1970, como o das corvetas classe Inhaúma. Neste projeto foram empregadas as lições da Guerra das Malvinas e as soluções da Fragata Niterói. O índice de nacionalização atingiu de 40 a 50% do custo total. A construção foi iniciada em 1983, no Arsenal de Marinha, sendo concluído o primeiro navio em 1989. O estaleiro Verolme, em Angra dos Reis, construiu outras duas corvetas de mesmo projeto. Também foram realizados o projeto e a construção do Navio-Escola Brasil, a partir do projeto das fragatas classe Niterói, sendo aquele lançado ao mar em 1983. O AMRJ teria capacidade para trabalhar na modernização do Navio-Aeródromo "Minas Gerais".


O convênio Marinha-USP rendeu excelentes frutos para a construção naval no que tange às necessidades da Marinha do Brasil, no período de 1960 a meados dos anos 1980. Para o Almirante Freitas, "o caminho que a Marinha escolhera em 1956 – associar-se a uma universidade, em vez de fundar e manter seu próprio Instituto e Centro Técnico – começava a demonstrar sua potencialidade. Era necessário explorá-lo mais intensamente, nele investindo mais, sem prejudicar-lhe as características principais: leveza da estrutura técnico-gerencial da Marinha; compatibilidade com os valores, tradições e aspirações universitárias; cuidadoso preparo intelectual dos oficiais da direção do ETCN-SP; e permanência desses oficiais no ETCN-SP por um período suficiente para se integrarem à equipe de professores e nela serem reconhecidos e considerados pelos seus colegas civis."


O ETCN-SP, até 1995, tinha se desenvolvido o suficiente para que houvesse sua expansão. Os trabalhos executados em associação ETCN-SP/DEN- Epusp poderiam ter sido estendidos a outros departamentos, como o de Mecânica/Mecatrônica, de Estruturas e Fundações e de Eletricidade/Eletrônica. De fato, as relações com os primeiros departamentos sempre foram mais próximas, pois se voltavam diretamente à formação dos engenheiros navais. Com o terceiro havia proximidade na medida em que os engenheiros eletrônicos da Marinha eram por estes formados. Com o tempo, alguns dos professores do convênio acabaram por se transferir em definitivo para os departamentos citados, e lá desenvolveram outros projetos de pesquisa. Os propósitos de ampliação do ETCN-SP o levariam a novas associações com departamentos congêneres do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe) e outras universidades e institutos de pesquisa. Relações com a DEN e o AMRJ integrariam o ETCN-SP, a exemplo do que já ocorria com a Diretoria de Sistemas de Armas da Marinha (DSAM) e o Centro de Estudos Técnicos da Marinha em São Paulo (CETM-SP). Seria uma expansão de atividades

a ser realizada de forma segura e paulatina, a fim de evitar reformas arriscadas. Deveriam ser feitos novos investimentos em ideias, projetos, pesquisas e desenvolvimento em oposição a investimentos em novos edifícios e novos órgãos, que em geral dão falsa sensação de progresso.


Desde sua formação, a Marinha vivenciou saltos tecnológicos, muito em virtude da inconstância de investimentos na aquisição de novos meios. Segundo o Pesquisador João Roberto Martins Filho, no seu artigo Marinha, Tecnologia e Política no Brasil do século XX ao século XXI (RMB, 2009),


“Evidentemente, o reconhecimento da importância da tecnologia nas temáticas navais não resolve a questão relativa à forma como ela se relaciona com demais níveis de análise: os aspectos estratégicos, políticos, financeiros, de formação e de pessoal."


Na produção de navios para a Marinha Mercante, o cenário era um pouco diferente. A partir de meados da década de 1980, ocorreu um colapso, do ponto de vista financeiro, nos aportes de recursos tradicionais destinados às infraestruturas. Houve um forte declínio nos investimentos públicos, levando à interrupção da expansão continuada de oferta iniciada na década de 1950. No período de 1980 a 2000, o Estado se tornou cada vez menos presente. Como a indústria era dependente desses recursos, subsidiando a construção dos estaleiros nacionais, pode-se entender o processo de deterioração contínua das infraestruturas do País e os flagrantes descompassos diante do crescimento da demanda. Os subsídios gerados pelo adicional de frete para renovação da Marinha Mercante viabilizaram os sucessivos planos de construção naval. Sem este subsídio e demais medidas protecionistas, tornou-se difícil a continuidade do crescimento até então vivido. De acordo com Josef Barat e outros autores (Visão Econômica da Implantação da Indústria Naval no Brasil, 2014),


"O problema, no entanto, é que o ciclo estatal-desenvolvimentista esgotou-se pelas razões expostas, demonstrando a incapacidade de se prosseguir nesse modelo. No caso da indústria naval especificamente, a incapacidade de se progredir foi agravada pelo fato de a Superintendência Nacional de Marinha Mercante (Sunamam) não ter tido competência para conduzir os programas de renovação da frota e de construção naval. Além de sérios problemas de corrupção, houve inúmeras falhas administrativas e ausência de políticas e diretrizes orientadoras, o que fez com que o projeto de se ter uma pujante indústria naval fracassasse."


Pode-se aferir que a indústria naval brasileira não acompanhou tecnologicamente a indústria naval internacional. Ainda que o curso de Engenharia Naval da Epusp possuísse programas de pós-graduação e se preocupasse com uma formação de excelência, aos moldes das principais escolas no exterior, este conhecimento não era transferido para a indústria nacional. Apenas a Marinha do Brasil se manteve nesse propósito de possuir belonaves possuidoras de tecnologia avançada, mas, sem os investimentos constantes que o setor de navios de guerra necessitava, dificultou-se a criação de uma base sólida para este fim.

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