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Devemos temer a proliferação de submarinos nucleares?

Leonam dos Santos Guimarães*



Publicado no Blog MAR & DEFESA em 26 de maio de 2023


* Leonam dos Santos Guimarães é engenheiro nuclear e naval (PhD) e membro titular da Academia Nacional de Engenharia. Foi Diretor Presidente da Eletronuclear SA e Coordenador do Programa de Propulsão Nuclear do Centro de Tecnologia Naval de São Paulo. Atualmente é Coordenador do Comitê Estatutário de Construção e Comissionamento da Usina Nuclear Angra 3.



O MAL ESTÁ NOS OLHOS DE QUEM VÊ


A potencial relação de causa e efeito entre o desenvolvimento de submarinos de ataque nuclear e a produção de armas nucleares por países do Tratado de Não-Proliferação/não detentores de armas nucleares era um assunto pouco discutido em fontes não classificadas, até a reunião trilateral pacto de segurança entre a Austrália, o Reino Unido e os Estados Unidos (AUKUS), anunciado em 15 de setembro de 2021 para a região do Indo-Pacífico.


A questão pode ser enunciada da seguinte forma: dado seu custo, impacto ambiental e possível conexão com a proliferação de armas nucleares, os submarinos de ataque nuclear são a tecnologia naval mais apropriada para enfrentar ameaças realistas à segurança nacional de um determinado estado sem armas nucleares? O debate sobre a aquisição de submarinos de ataque nucleares é uma reminiscência da longa controvérsia sobre a conveniência de se usar a energia nuclear como fonte de energia nos países em desenvolvimento sem armas nucleares.


A conexão entre a energia nuclear e a disseminação de armas nucleares surgiu após o primeiro teste de armas nucleares da Índia, em 1974, e da percepção de que o uso da energia nuclear se expandiria rapidamente após a crise do petróleo de 1973. O entendimento convencional era que o estabelecimento de um programa de energia nuclear civil poderia fornecer uma justificativa conveniente para a aquisição de material físsil especial e tecnologias relacionadas para a produção de armas nucleares. Para evitar essa possibilidade, um regime internacional de salvaguardas foi estabelecido por acordos do Tratado de Não-Proliferação (TNP), e executado pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). Reatores, enriquecimento, reprocessamento e outras instalações nucleares em estados sem armas nucleares são internacionalmente protegidos para detectar e impedir a produção ou desvio de material físsil para armas.


Os estados enquadrados na condição de jure do Tratado de Não-Proliferação/estados com armas nucleares - EUA, Reino Unido, França, Rússia e China - consideram, na maioria das vezes, esse regime com ceticismo. Eles não estão totalmente confiantes de que as salvaguardas possam detectar ações ilegais em tempo hábil. A visão predominante tem sido a de que a mera posse de tecnologias sensíveis eleva um estado "sem armas nucleares" a um status de fato "com armas nucleares".


A possibilidade de que um dispositivo nuclear possa ser feito rapidamente leva adversários prudentes a agir como se a arma já tivesse sido feita. No entanto, do ponto de vista técnico, a aquisição de material físsil especial constitui apenas uma primeira etapa para quem adquire um artefato explosivo – as etapas posteriores também estão sujeitas a outros regimes internacionais de salvaguardas, como o Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (MTCR).


Hoje, os temores sobre a disseminação da energia nuclear — levando potencialmente a uma proliferação "horizontal" de armas nucleares — não se concretizaram. Principalmente devido a preocupações com a segurança do reator, crescimento econômico lento e altos custos da infraestrutura necessária e construção do reator, a energia nuclear dificilmente se difundiu além daqueles estados onde ela já existia nos anos 2000. O foco das preocupações com a proliferação tem sido os esforços de alguns países para desenvolver uma capacidade de armas nucleares. Os supostos — ou assumidos publicamente — planos de vários estados sem armas nucleares de adquirir submarinos de ataque nuclear (como o Brasil, a partir dos anos 1980) aqueceram o debate sobre a proliferação.

Historicamente, o desenvolvimento de reatores nucleares para propulsão naval em países com armas nucleares precedeu seu uso como fontes de energia para aplicações civis. Por exemplo, o reator comercial de água pressurizada é um descendente direto dos reatores submarinos desenvolvidos para a Marinha dos Estados Unidos no início dos anos 1950. No caso dos EUA, a propulsão nuclear foi desenvolvida após a aquisição de armas nucleares.


UMA APLICAÇÃO PACÍFICA DA ENERGIA NUCLEAR?


Havia uma diferença entre as abordagens de salvaguarda da AIEA e do TNP: a primeira afirmava que a energia nuclear não deveria ser usada para propósitos militares "não bem definidos", enquanto a segunda insistia que a energia nuclear não deveria ser usada para propósitos explosivos "bem definidos" de aplicação na guerra. No passado, isso levou a algumas interpretações ambíguas, que já foram esclarecidas.


De acordo com o estatuto da AIEA, a agência deve assegurar – na medida do possível – que a assistência fornecida por ela, ou a seu pedido ou sob sua supervisão ou controle, não seja usada de forma a promover qualquer propósito militar. Esta disposição implica, por exemplo, que as salvaguardas seriam projetadas para garantir que o urânio enriquecido fornecido para uso em um reator de energia civil não seja usado em armas nucleares ou em aplicações militares não explosivas, como propulsão naval ou satélites militares.

Em contraste, os acordos do TNP proíbem o desvio de material nuclear de "atividades pacíficas" para "armas ou outros dispositivos explosivos", mas não incluem nenhuma proibição de "aplicações militares não explosivas". Esses acordos incluem disposições que permitem a um estado retirar material nuclear das salvaguardas gerais enquanto estiver sendo usado para uma "atividade militar não proibida", como combustível para um reator de propulsão submarina.

Para harmonizar essas abordagens originalmente diferentes, os atuais acordos de salvaguarda da AIEA incorporam os princípios do TNP, incluindo disposições para retirar materiais de salvaguardas gerais a serem usados ​​em "atividades militares não proibidas", como a propulsão de submarinos nucleares.


É de extrema relevância o parecer oficial da AIEA, em resposta à solicitação de um representante argentino no Conselho de Governadores da entidade, decorrente da presença de um submarino de ataque nuclear britânico no Atlântico Sul durante a Guerra das Malvinas/Falklands. A solicitação questiona diretamente qual o grau de compatibilidade entre o TNP na América Latina e no Caribe, os acordos de salvaguardas vigentes e o estatuto da AIEA referente à legitimidade das aplicações militares não explosivas de materiais nucleares. O relatório da AIEA estabeleceu que as diferenças entre os vários tipos de acordos não significam incompatibilidade. É razoável dizer que a propulsão submarina nuclear é compatível com um programa nuclear voltado exclusivamente para fins pacíficos – como é o caso do programa brasileiro.


UMA DISSIMULAÇÃO PARA ARMAS NUCLEARES?


As capacidades tecnológicas adquiridas durante o desenvolvimento do submarino de ataque nuclear poderiam, teoricamente, facilitar a futura aquisição de armas nucleares. Essas capacidades, no entanto, também facilitam o crescimento social e econômico. Obviamente, os potenciais efeitos derivados de um programa de propulsão nuclear vão muito além de apenas aplicações de armas.


Não há dúvida de que o desenvolvimento da tecnologia de fissão nuclear aumenta a capacidade potencial de um país para produzir armas nucleares. Fazê-los, no entanto, é uma decisão política. Um exemplo de forte vontade política contra tais armas é o Brasil, cuja Constituição Federal proíbe inequivocamente as armas nucleares de seu território nacional.

Em 1991, Brasil e Argentina assinaram o chamado Tratado Tripartite para proteger suas instalações nucleares nativas, criando uma agência independente para controle de estoque de material nuclear chamada ABACC. A AIEA foi então convidada a participar plenamente desse regime de salvaguarda específico, e o chamado Tratado Quadripartite foi assinado no mesmo ano – e atualmente está sendo aplicado. Este tratado define provisões específicas para o uso de materiais produzidos por instalações protegidas na propulsão nuclear. Nesse caso, seus "procedimentos especiais" asseguram a aplicação de salvaguardas acima e além das salvaguardas impostas pela AIEA, sem divulgar informações tecnológicas ou militares classificadas sobre projeto e operação de submarinos de ataque nuclear.


A proliferação de armas nucleares é um assunto eminentemente político e não técnico. Tanto os estados com armas nucleares de jure, como os de facto, obtiveram material físsil por meio de programas especificamente direcionados para esse fim. Consequentemente, eles seguiram o caminho mais curto e econômico em direção ao objetivo perseguido, e é altamente improvável que um país que adquire capacidade de armas nucleares escolha uma rota indireta como o desenvolvimento da propulsão naval nuclear.

Deve-se notar que, não aderindo ao TNP, a Marinha Indiana desenvolveu submarinos de mísseis balísticos movidos a energia nuclear e com armas nucleares, depois de desenvolver armas nucleares: a classe Arihant. Este foi o primeiro submarino nuclear a ser construído por um país diferente dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. Ressalte-se também que Israel, também não aderindo ao TNP, desenvolveu, em parceria com a Alemanha, a classe Dolphin, submarino de propulsão convencional e com armamento nuclear. O mesmo deve ser feito pela Coreia do Norte.

UM CICLO DE COMBUSTÍVEL "PROLIFERANTE"?


Mesmo não sendo proibida pelo TNP, a propulsão naval nuclear é, sem dúvida, uma aplicação militar da tecnologia de reatores. Isso pode levar alguns a concluir que há uma grande diferença entre os ciclos de combustível de submarinos nucleares e energia estacionária ou reatores de pesquisa, e que as salvaguardas internacionais e/ou multilaterais teriam dificuldade em impedir o desvio de materiais nucleares do ciclo de combustível de um submarino.


Tecnicamente, este não é o caso. Devido às restrições de espaço em um submarino e ao requisito operacional para reabastecimento pouco frequente, os reatores submarinos usam combustível de urânio em um enriquecimento maior do que os reatores estacionários (diz-se que os atuais reatores submarinos dos EUA usam urânio altamente enriquecido para armas). Por outro lado, a França desenvolveu uma tecnologia alternativa de combustível de urânio de baixo enriquecimento na década de 1970, e há indícios de que a Rússia também não pode usar combustível de urânio de alto enriquecimento.


Atualmente, os reatores de propulsão naval são tipos compactos de água pressurizada. O enriquecimento de combustível não é necessariamente "grau de armas", nem esse tipo de reator é adequado para a produção de plutônio. Um reator de propulsão naval é exatamente o mesmo que muitos dos reatores de pesquisa e energia que estão operando em todo o mundo – sem que ninguém afirme que eles podem representar uma possível violação do status quo.

Nesse aspecto, um novo problema surge do Acordo AUKUS. O tipo específico de combustível nuclear para os submarinos AUKUS ainda não foi anunciado. No entanto, espera-se que eles usem urânio altamente enriquecido como submarinos dos EUA e do Reino Unido. Isso levanta questões sobre até que ponto as obrigações do TNP para os EUA e o Reino Unido, como estados com armas nucleares, e da Austrália, como um estado sem armas nucleares, são totalmente respeitadas.


UMA JUSTIFICATIVA PARA CORRIDAS REGIONAIS DE ARMAS NUCLEARES?


Considerando seu valor de capital para o poder naval, a aquisição de submarinos de ataque nuclear por um estado sem armas nucleares poderia induzir a proliferação de armas nucleares em outros países que se sentem ameaçados por tal mudança em seu equilíbrio de poder naval regional. A propulsão nuclear faz parte de um sistema de armas convencional, entretanto, e uma resposta mais apropriada seria desenvolver seus próprios submarinos nucleares. Por esse mesmo raciocínio, a introdução de qualquer sistema de armas totalmente não nuclear poderia alterar o equilíbrio de poder.


Há um consenso generalizado entre os estrategistas de que a futura guerra naval dependerá fortemente de submarinos – particularmente o submarino de ataque nuclear – em vez de navios de superfície. Essa visão é corroborada pelo desenvolvimento contínuo de submarinos cada vez mais sofisticados no Ocidente e na Rússia. Isso fornece um forte incentivo para a aquisição de submarinos nucleares por países militarmente importantes do Terceiro Mundo.


Na medida em que submarinos de ataque nuclear podem servir como substitutos de armas nucleares, eles podem promover a estabilidade internacional: "Melhor um submarino no fundo do mar do que uma bomba no porão". Por outro lado, sua aquisição pode estimular corridas armamentistas navais entre rivais regionais sem ganho líquido em segurança nacional ou internacional.


Estados com armas nucleares não podem esperar minimizar essa tendência "defendendo água e bebendo vinho". Em vez disso, eles devem seguir seu próprio exemplo dado no caso da redução da proliferação “vertical” de armas nucleares – diminuindo a dependência de submarinos de ataque nuclear.


CONCLUSÕES

Mesmo que os riscos potenciais de proliferação de submarinos dotados de propulsão nuclear não devam ser descartados, eles não devem ser exagerados. A ênfase na não-proliferação foi amplamente baseada na expectativa de que a energia nuclear se espalharia rapidamente após a crise do petróleo de 1973. Essa previsão não se tornou realidade. Por razões semelhantes, como altos custos de pesquisa, desenvolvimento, construção e manutenção, riscos tecnológicos e condições rigorosas de fornecimento de material físsil, o número de países do Terceiro Mundo que adquirem submarinos nucleares permanecerá pequeno, tendo Brasil, Coréia do Sul, Austrália e talvez o Irã, os mais referenciados como potenciais recém-chegados. Consequentemente, é hora de desenvolver uma política reconhecida internacionalmente em relação a essas aquisições e seu possível efeito na proliferação.


A emergência de uma nova classe de "Nuclear Submarine State (NSS)" que se somaria aos “Nuclear Weapon State (NWS) e “Non Nuclear Weapon State (NNWS)” criadas pelo TNP tenderia a reduzir as distinções psicológicas e militares entre estados nucleares e não-nucleares,. Como no caso da proliferação de armas nucleares, o grau de oposição a tal desenvolvimento depende da identidade do estado submarino nuclear. Os Estados Unidos se opõem veementemente ao surgimento de quaisquer novos estados com submarinos nucleares — porque isso pode limitar a liberdade de ação da Marinha dos EUA em todo o mundo.


Por outro lado, tanto o Reino Unido quanto a França encorajaram as ambições de submarinos nucleares do Canadá - mas presumivelmente eles se oporiam às da América Latina. A Rússia arrendou duas vezes um submarino nuclear de mísseis guiados para a Índia e provavelmente também ajudou o programa doméstico de submarinos nucleares indianos, apesar da forte oposição dos Estados Unidos.


Por outro lado, a China presumivelmente se oporia extremamente a uma eventual aquisição de submarino nuclear por um país do Leste ou Sudeste Asiático, como a Austrália – mas não a outros.


As restrições rigorosas sobre o fornecimento de materiais físseis e a pressão política exercida para impedir o desenvolvimento local de submarinos de ataque nuclear em países do TNP/sem armas nucleares no Terceiro Mundo são fundamentalmente baseadas em objetivos estratégicos geopolíticos e militares. Esta prática dificilmente está relacionada com o espírito do TNP; trata-se, de fato, uma questão de liberdade dos mares — não de proliferação nuclear.

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Editor responsável: Francisco Eduardo Neves Novellino


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