Publicado no Blog MAR & DEFESA em 13 de julho de 2023
* Extraído do depoimento prestado pelo General de Divisão (Ref.) Octávio Pereira da Costa (1921-2021) à Biblioteca do Exército Editora (BIBLIEX), a fim de compor o Tomo 3 da coletânea "1964 – 31 de Março: O Movimento Revolucionário e a sua História" , publicada pela BIBLIEX em 2003.
NOTA INTRODUTÓRIA (MAR & DEFESA)
No final de 2022, o Brasil vivenciou, mais uma vez, um período turbulento em que as Forças Armadas foram demandadas por grande parte da população para intervir na política interna, a fim de restaurar uma situação institucional aparentemente conflituosa e instável. O que explica esse comportamento? Seriam os militares, em sua maioria, simpáticos a esse tipo de atuação ou não? Que fatores acentuam ou atenuam esse fenômeno sócio-político? Como historicamente se iniciaram os movimentos políticos onde preponderou a atuação das Forças Armadas? Todos eles possuem a mesma natureza ou se apresentam de forma diferente?
O texto que se segue reproduz a memória do General Octávio Pereira da Costa, falecido recentemente com a idade de 100 anos, e que nasceu na época do Tenentismo, combateu na II Guerra, e vivenciou os episódios políticos nacionais mais marcantes do século XX. Quando eclodiu o 31 de Março de 1964, o General Octávio Costa era um Tenente-Coronel de 43 anos; ao final do Regime Militar, estava na Reserva, no posto de General de Divisão, com a idade de 64 anos.
Cremos que as experiências e ensinamentos do General Octávio Costa certamente contribuirão para que o leitor possa melhor entender as causas que geralmente levam as Forças Armadas a intervir - ou serem demandadas a se comportar dessa forma - na política nacional. Devido à extensão do texto selecionado, julgamos ser adequado dividi-lo em partes, que serão publicadas sequencialmente.
Desejo ao prezado leitor uma leitura proveitosa.
Francisco Novellino
Editor
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COMO DECORRÊNCIA DE MINHAS LEITURAS SOBRE SOCIOLOGIA MILITAR, sintetizaria, num esquema, como podem ser as Forças Armadas de quaisquer países, em quaisquer épocas. As Forças Armadas, basicamente, podem ser profissionais. O que são Forças Armadas profissionais? São aquelas a serviço do estado de direito. Cumprem o que as instituições, no estado de direito organizado, lhes determinam. Exemplo clássico são as corporações armadas das nações desenvolvidas, das nações industriais, como os Estados Unidos da América do Norte. O outro tipo de instituições armadas são as pretorianas. O que são Forças Armadas pretorianas? São aquelas que, vez por outra, intervêm na vida do país, participam dos acontecimentos políticos. Executam uma ação de intervenção e, mais adiante, se submetem ao Poder civil voluntariamente. A terceira forma são as Forças Armadas cesaristas, ou seja, a serviço do césar – um exemplo claro tivemos durante o Governo Vargas. Vargas era o nosso césar, o nosso pequeno césar. Outro exemplo, a fujimorização. Há pouco tempo, as Forças Armadas peruanas estiveram a serviço de Fujimori (Alberto Fujimori, ex-Presidente do Peru). Há outros exemplos pela história afora, mas estes me parecem bastante ricos. E, finalmente, a quarta forma: Forças Armadas no governo, ou seja, governos militares, regimes militares, forma última e acabada de intervenção militar. Recapitulando: Forças Armadas profissionais, pretorianas, cesaristas e, finalmente, o militarismo. Ao longo da nossa História, seja no Império, seja na República, fomos, quase sempre, profissionais, majoritariamente pretorianos, um pouco cesaristas e, finalmente, chegamos a ser, algum tempo, militaristas.
O autoritarismo militar foi plantado, em nosso País, pelo colonizador português. O capitão da Capitania Hereditária, ou o bandeirante, era, basicamente, um chefe militar, além de juiz, administrador e coordenador de todos os assuntos. Esse autoritarismo prosseguiu ao longo da nossa História. Gostaria de assinalar, para que sejam bem compreendidos os fatos que se passaram posteriormente, que a coisa mais terrível que afetou o Exército Brasileiro, ao longo de toda a História do Brasil, foi o decreto que instituiu a Guarda Nacional, em 1831, na Regência, preterindo o Exército. A Guarda Nacional, a serviço das oligarquias rurais, decididamente a serviço das oligarquias rurais, tinha prioridade para o recrutamento militar. Os melhores eram levados para a Guarda Nacional, e restava, ao Exército regular, buscar os seus homens na plebe, nas massas populares. E isso que, realmente, foi um desprimor em relação ao Exército; por outro lado, resultou, afinal, extremamente favorável, no sentido de que, nas suas origens mais remotas, a Força Terrestre é eminentemente popular. Foi com essa deficiência básica de recrutamento, de preparação, que o Exército enfrentou as revoluções do tempo regencial, e, depois, chegou às lutas externas e à nossa grande guerra externa, a Guerra da Tríplice Aliança, onde se viu em situação dificílima, ao enfrentar o inimigo organizado, no seu território, determinado, disposto a sofrer as últimas consequências. O Duque de Caxias, o nosso Patrono, em determinado momento da campanha, interrompe as operações, e nesse interregno, realiza imenso esforço de reorganização, sem aceitar mercenários que lhe eram oferecidos. Incorpora negros, escravos, descendentes de escravos, e os submete à disciplina que ele sabia manter em suas fileiras. É aí, nesse momento fundamental, que Caxias prepara o Exército para a vitória, para o depois e para o sempre. Gostaria de ler, a esse respeito, um trecho de autor inteiramente neutro, pelo contrário, homem até de esquerda, San Tiago Dantas: “Foi a partir da Guerra do Paraguai que o Exército ganhou, entre nós, a estabilidade e a coesão interna que dele fariam, daí por diante, o ponto de maior resistência de nosso organismo político. Na classe média nascente é que o Exército vai escolher os seus oficiais, alguns vindos de soldados, outros preparados nesse centro de estudos de classe média, que seria, por oposição às faculdades jurídicas da aristocracia agrária, desde 1874, a Escola Militar.” San Tiago Dantas reconhece que foi a partir da Guerra do Paraguai que o Exército ganhou estabilidade e coesão internas, graças àquela grande reorganização de Caxias. Outro autor, também de esquerda, grande pensador militar, a quem não damos o devido relevo, Nelson Werneck Sodré, afirma: “O Exército que surge da Guerra do Paraguai é força nova na vida do País, não mais será relegado a segundo plano, não se conformará com isso, não se conformará com um papel secundário na vida do País.” E eu repito aqui o que já disse alhures, em conferência e artigo, porque isso se encaixa perfeitamente nesta sorte de considerações: “Esse sopro de participação na vida vem de uma jovem oficialidade, originária de uma classe média urbana emergente, marcada pelo desafio de romper com os dogmas da aristocracia rural – aristocracia rural que queria a Guarda Nacional, que dava prioridade à Guarda Nacional.” “Constitui-se então, a partir daí, o Exército como um dos principais motores das grandes transformações político-sociais ocorridas no Brasil, no fim do século XIX e nas três primeiras décadas do século XX – daí, a participação do Exército, ao influxo das idéias que promanam da Escola Militar, na Questão Religiosa, na Questão Militar, na Abolição, e afinal, na Proclamação da República.” Agora sou eu que escrevo: “Quando as oligarquias rurais, refeitas dos golpes sofridos com a Abolição da Escravatura e com a Proclamação da República, retomam o primado do poder político, sob a forma da ‘política de governadores’, da política do ‘café-com-leite’, o Exército volta a ser o grande motor das transformações político-sociais, sob a forma legendária do tenentismo.”
Gostaria de lembrar, então, que, a partir da Guerra do Paraguai, o Exército encarna um novo papel, o de substituir o próprio poder moderador do Imperador, já em pleno declínio. No momento mesmo em que emerge das transformações político-sociais do País, o Exército é essa força nova, já que a Marinha não é bem o caso, porque era uma instituição claramente monárquica. A força nova é o Exército, que tem sangue de negro também nas suas fileiras, um Exército diversificado, amálgama de tanta gente, de todas as origens. Quando o Exército surge com esse papel, investindo-se em uma nova figura de poder moderador, é a hora do declínio da monarquia, o seu fim. Basta ver que, depois da Guerra do Paraguai, irão decorrer apenas 19 anos até a sua queda. Eis que coincide a emergência de um Exército renovado, popular, nitidamente representativo das classes médias urbanas, contrário às oligarquias rurais, com o momento em que a monarquia está em pleno ocaso. Daí, então, os militares proclamam a República, não propriamente por intermédio de uma revolução, e sim de um golpe de Estado que substitui o regime monárquico pelo regime republicano. Seguem-se as reações naturais, após todo golpe de Estado. Surgem as figuras de dois militares, que não são governantes civis, mas, claramente, governantes militares: Deodoro e Floriano. Cabe a essa extraordinária figura de Floriano, que é o pai do nacionalismo brasileiro mais puro, e que se tornou o Consolidador da República, sufocar todas as reações saudosistas, dos pretensos defensores da monarquia, e outras quantas que surgiram, até mesmo as incompreensões dentro da outra Força Armada, a Marinha. Floriano, “pulmão de ferro”, exaure as suas energias, e só sai da cena política, praticamente inválido. Chega a dizer, quando os nacionalistas militares apelam para ele: “Sou um inválido da Pátria.” E é, no momento em que esse grande soldado se considera um inválido da Pátria, que começa o poder civil, por meio de Prudente de Morais. Voltam as oligarquias rurais. Volta a política dos governadores. Volta o poder dos grandes estados da Federação.
De passagem, quero dizer que, na Constituição – a primeira constituição republicana, quando se define o papel das Forças Armadas – surge, também pela primeira vez, na história das nossas constituições, repetindo-se, a partir daí, em todas elas, até hoje, a expressão “Instituições Nacionais Permanentes”. Por que permanentes? Era o velho complexo da Guarda Nacional, o velho receio de que chegasse o dia em que as oligarquias rurais quisessem extingui-las. As oligarquias voltariam a ter as milícias a seu comando, milícias inteiramente disponíveis para todos os seus propósitos, para todos os seus objetivos. Foi, então, na Constituição de 1891, que apareceu, pela primeira vez, essa expressão irreversível – “Instituições Nacionais Permanentes”. É aquela velha verdade: muitas vezes afirmamos para negar e negamos para afirmar. Assim, o legislador colocou essa expressão, e ela prosseguiu em outras Cartas e diplomas, tendo chegado, intacta, até hoje. Esse episódio da criação da Guarda Nacional, essa surda oposição das oligarquias rurais ao papel de uma Força Armada, como o Exército, eminentemente popular, eminentemente democrática, representativa do povo, no que ele tem de mais representativo. Tudo isso mostra como as oligarquias sempre viram no Exército uma ameaça. Representante lídimo das novas classes urbanas, das classes médias, dentro do incipiente processo de industrialização brasileira e de um processo de urbanização, que começou a ser feito a partir dos primeiros anos da República – o Exército viveu os dias da famosa República Velha, até 1930; sempre atento aos passos das oligarquias rurais e estaduais. É contra essas oligarquias rurais e estaduais que se levanta, outra vez, a mocidade militar, num movimento pretoriano, investindo-se do papel de poder moderador, que julgava ter herdado do Império.
O Exército se auto intitulara um verdadeiro poder moderador, capacitado a realizar intervenções periódicas. Sendo profissional, esse poder moderador também era pretoriano, porque, vez por outra, sentia a necessidade de intervir, para melhor ordenar os rumos do País. Nesse tempo, prosseguem os desmandos, os descaminhos, os desvios e as mazelas do tempo da Monarquia, sobretudo as de natureza econômica. Ocorrera a libertação dos escravos, mas o trabalho no Brasil era, praticamente, uma continuação do trabalho escravo. E havia problemas de toda natureza, como, por exemplo, os vícios da legislação eleitoral. Isso tudo amadureceu um pensamento militar reformista, o pensamento dos famosos “tenentes” – o tenentismo brasileiro – que gerou várias vertentes. Desaguou na Coluna Prestes; desaguou no cesarismo de Vargas, mas se manteve fiel às suas origens. Por outro lado, vimos uma parte desse pensamento tenentista, decepcionado com os rumos da política brasileira, voltar-se até para a extrema direita, os tenentes que desaguaram no integralismo. A maioria dos tenentes, no entanto, ficou com Vargas e patrocinou a sua aventura cesarista. Uma outra parte enveredou por uma doutrina diferente, equivocadamente, lamentavelmente, desgraçadamente, com o surgimento da figura de Luís Carlos Prestes que, depois da sua legenda heróica de “Cavaleiro da Esperança”, embebeu-se de leituras de natureza marxista, e chegou à conclusão de que o Brasil deveria tomar rumos totalmente diferentes. Com o maior espírito de compreensão, devemos entender todas as posições. Devemos negá-las, combatê-las, mas compreendê-las, sobretudo, compreender alguém como ele, e como outros, que deram a sua vida por uma idéia, por pior que fosse essa idéia. Sacrificaram-se por ela e, por isso, merecem o nosso respeito. Outros tenentes acompanharam Vargas na sua aventura cesarista, inclusive Juarez, Cordeiro de Farias e Juracy Magalhães. Vargas, com a sua sabedoria política, transformou esses tenentes em chefes de estado regionais. Dessa forma, criaram-se as dinastias militares. No Norte, no Pará, os Baratas. Na Bahia, os Magalhães, o Juracy. No Ceará, os Távoras. Em Mato Grosso, os Müller. Em Sergipe, os Maynard Gomes. E tantos outros por aí. Todos esses filhos do cesarismo, tudo isso veio do “barco” do tenentismo, que “ancorou no porto” do cesarismo varguista. Outros, também, lamentavelmente, enveredaram pelo totalitarismo de direita. Temos bons exemplos: Severo Fournier, Newton Cavalcanti. O próprio Filinto Müller, foi cesarista, mas era muito à direita, extremamente à direita. O Freitas Rolim, grande figura humana, grande soldado, mas integralista, determinado em suas convicções. Tenho por todos o maior respeito, porque desejavam o bem do seu País, o bem do seu povo, mas trilharam caminhos equivocados.
Eis que chegamos à Revolução de 1930, ou melhor, ao golpe de Estado de 1930, posto que também não foi, não se pode dizer que tenha sido uma revolução. Vargas, com a sua sabedoria política, transforma os tenentes em governadores de Estado. Esses governadores criam suas próprias oligarquias. Até hoje existem remanescentes, como a dos Magalhães na Bahia. O Juracy está nos seus últimos dias de vida em Salvador, mas os seus filhos ainda estão aí. Seu neto ainda está no Congresso. Há outros casos de remanescentes dessas oligarquias. Vive-se o período de Vargas, o qual faz alguma coisa próxima do que seria um propósito revolucionário, modifica a legislação eleitoral, modifica a legislação trabalhista. Surge um trabalhismo estatal, inteiramente vinculado às ordens do Chefe de Estado, mas, de qualquer maneira, a legislação trabalhista mudou muito, é a primeira grande coisa que se faz no período republicano, em favor das classes trabalhistas. Finalmente, em 1937, Vargas, apoiado por muitos militares – dizem alguns autores que até encarnando a vontade de alguns militares mais radicais, que com ele se reuniram no dia 27 de setembro – dá o tal golpe de Estado de 1937, e cria o Estado Novo. O Estado Novo só não recolheu reações mais vivas, a não ser a do Movimento Integralista de 1938, porque, logo a seguir, começou a Grande Guerra Mundial, que, consequentemente empenhou o Brasil no esforço de guerra, inicialmente um esforço civil, depois um esforço militar. Em nome da guerra, nada se fez contra o Estado Novo de Vargas e, por isso, durou mais oito anos. Com a volta da Força Expedicionária Brasileira e com a abertura que se seguiu a essa volta, os militares compreendem que é chegado o fim do período de Vargas, por eles deposto em 29 de outubro de 1945. Começa aí – é onde desejo chegar – um dos períodos mais marcantes da vida brasileira.
Continua no próximo artigo, onde o General Octávio passa a abordar as duas correntes que se criaram a partir da deposição de Getúlio: o "varguismo" e o "antivarguismo".
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Editor responsável: Francisco Eduardo Neves Novellino
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