Eduardo Siqueira Brick*
MAR & DEFESA | 02 DE SETEMBRO DE 2024
Imagem: https://portalbids.com.br/2023/06/16/base-industrial-de-defesa-e-seguranca-uma-necessidade-de-todo-o-brasil. Acessada em 01/09/24.
Todos os caminhos estão errados quando você não sabe aonde quer chegar.
(William Shakespeare)
Em tempos de guerra, ou conflito iminente, uma nação deve priorizar a prontidão e o emprego de suas forças armadas (FFAA), que se constituem em um dos instrumentos de defesa essenciais para a garantia da independência, da soberania e da defesa de interesses nacionais vitais. Ou seja, a prioridade para alocação de recursos orçamentários recai sobre a criação ou fortalecimento das unidades militares combatentes (brigadas na Força Terrestre e nos Fuzileiros Navais, forças-tipo na Marinha, alas e esquadrilhas na Força Aérea, sistemas de comando e controle, etc.), qualificadas pelos fatores de capacidade, entre os quais se destacam pessoal, material (sistemas de armas), organização, doutrina, treinamento, instalações e todo o apoio logístico necessário para viabilizar e sustentar o emprego das unidades militares nas operações de combate.
Já em tempos de paz, como os que o Brasil vive há praticamente oito décadas, a prioridade absoluta tem que ser para o desenvolvimento e sustentação da base logística de defesa (BLD) nacional, que se constitui no outro Instrumento de Defesa, tão essencial quanto as
forças armadas, mas que não se confunde com elas. Essa mudança de prioridade das forças armadas para a BLD, quando a situação deixa de ser de guerra, ou de conflito iminente, justifica-se pelos seguintes motivos:
a) Em tempos de paz, não existe urgência para emprego, apenas para preparo. Deve-se acrescentar o fato de que, com a aceleração do desenvolvimento tecnológico, os principais sistemas de armas (embarcações, carros de combate, aeronaves, mísseis, etc.), além de cada vez mais caros, ficam obsoletos em tempos cada vez mais curtos. Essa obsolescência é particularmente aguda no caso dos componentes críticos usados para construir esses meios. Tal fato recomenda que não se façam investimentos em grandes quantidades de meios e, sim, em pequenas quantidades, em paralelo com grandes investimentos na criação de capacidade industrial para construí-los, ou modernizá-los, quando necessário, e em inovação contínua.
b) O desenvolvimento de uma capacidade operacional de combate é muito mais rápido e fácil do que uma de logística de defesa (a primeira se faz em meses, ou poucos anos. A segunda, requer décadas.). A experiência do Brasil nos dois grandes conflitos em que esteve envolvido (Guerra do Paraguai e Segunda Grande Guerra) comprovam essa assertiva;
c) Em tempos de paz, os recursos orçamentários para defesa são escassos e, isso, obriga a que se façam escolhas e se estabeleçam prioridades. No caso, pelos argumentos expostos, tem que ser para a BLD.
Ressalte-se que a BLD inclui, não somente a base industrial de defesa (BID), mas, também, a base científico-tecnológica que lhe dá viabilidade técnica e robustez, o orçamento de defesa, e os processos gerenciais de aquisição de meios e de pesquisa e desenvolvimento (P&D) decorrentes.
É importante, também, destacar que a BLD possui dois lados. O lado da oferta, representado pela BID e o lado da demanda, representado pelo orçamento e pelas instituições especializadas, que devem ser independentes das FFAA, responsáveis pelos processos de aquisição de meios e gestão de P&D. Essas instituições também são responsáveis por politicas industriais e de ciência, tecnologia e inovação (CT&I) voltadas para o desenvolvimento, sustentação e fortalecimento da BID, principalmente daquela parte que é estratégica e essencial para a defesa e que, via de regra, depende quase que totalmente da demanda gerada pelo Estado, pois a alternativa de exportações nem sempre é viável, ou desejável, por razões estratégicas e de relações internacionais.
Infelizmente, nunca fizemos isso de maneira consistente e sistemática no Brasil. Portanto, perdemos quase oito décadas de períodos de bonança após a Segunda Grande Guerra, tempo que teria sido mais do que suficiente para estruturarmos uma capacidade industrial, tecnológica e uma BLD pujantes, mesmo com os orçamentos baixos usualmente praticados. A título de comparação, a China, em apenas quatro décadas, deu um gigantesco salto no desenvolvimento de sua capacidade industrial, tecnológica e militar.
Como erramos na definição de onde queremos chegar, provavelmente por ignorar que existem dois Instrumentos de Defesa, que são essenciais, e não apenas um, quase todas as aquisições acabam sendo feitas no exterior, geralmente a "toque de caixa", com argumentos de urgência. E, isso, só piora a situação, gerando um ciclo vicioso. As compras no exterior, muitas vezes desnecessárias em tempos de paz, subtraem os poucos recursos que deveriam ter sido investidos, prioritariamente e com persistência, ao longo de décadas, no fortalecimento da BLD. Como não se constrói uma BLD adequada às necessidades da defesa de um país do porte do Brasil, quando surge a necessidade de uma nova aquisição, a desculpa para compra no exterior já está pronta: a BLD nacional não é capaz de suprir essa “necessidade”, muitas vezes questionável. A rápida obsolescência dos sistemas de defesa, ou de seus componentes críticos, agrava essa situação, pois exaure os poucos recursos orçamentários disponíveis. O resultado final desse processo é trágico e conhecido: FFAA e BLD defasadas e sucateadas. Essa é a "big picture" da realidade da defesa no Brasil.
Surge então a questão: como vencer esse dilema e quebrar esse círculo vicioso? Em tempos de paz, com orçamentos restritos, o sensato é investir em ciclos de pesquisa e desenvolvimento (P&D), gerando protótipos de produtos de defesa (PD) e, imediatamente a seguir, fabricar uma pequena cabeça de série, com poucas unidades, para serem submetidas a exaustivas avaliações operacionais, pelo órgão responsável pela BLD, e testes de campo, em
unidades militares das FFAA. Essas medidas ajudam a criar e sustentar uma BID própria, mesmo que de pequeno porte. O exemplo da Embraer e de várias outras empresas de defesa criadas nas décadas de setenta e oitenta, quando era esse o caminho que o Brasil trilhava, comprova isso. Ou seja, é um processo que funciona.
Os exaustivos testes, avaliações e treinamentos levam a identificar problemas de projeto ou produção, melhorias desejáveis no desempenho, problemas de apoio logístico e, também, ao desenvolvimento de novas táticas. A sequência lógica é a solução desses problemas que foram detectados e a geração de sucessivas versões do produto de defesa (PD), com pequenas produções (a única possibilidade em tempos de paz, com baixos orçamentos). Outro fator que leva a essa necessidade é o fato, já mencionado, de que a tecnologia evolui muito rapidamente, fazendo com que componentes críticos usados fiquem obsoletos (alguns em apenas dois a cinco anos) e o PD tenha que, obrigatoriamente, ser alterado.
Existem, portanto, duas justificativas para sucessivas versões de produtos de defesa: correção de problemas e melhorias em desempenho, e impossibilidade logística para ações de manutenção, devido à obsolescência de insumos críticos usados nesses produtos. Atribuir responsabilidades de manutenção de segundo e terceiro escalões aos fabricantes desses PD, também ajudaria a sustentar essas empresas, ao mesmo tempo em que reduziria a necessidade de as FFAA manterem estruturas próprias e dispendiosas. Isso só é viável
com o desenvolvimento e produção dos PD no país. Dessa forma, tem-se um ciclo virtuoso exequível.
Da maneira que temos feito, o único resultado, perfeitamente previsível, é o enfraquecimento da capacidade militar do Brasil, tanto a operacional de combate, quanto a de logística de defesa, e a crescente dependência em produtos importados. Erro estratégico grosseiro, que irá cobrar um alto preço, em termos de independência, soberania, ou defesa de interesses nacionais vitais, quando o “momento da verdade “chegar.
* Professor Titular (aposentado) da Universidade Federal Fluminense (UFF), membro titular da Academia Nacional de Engenharia (ANE), membro do Conselho Consultivo do Centro de Defesa & Segurança Nacional (CEDESEN) e pesquisador do Núcleo de Estudos de Defesa, Inovação, Capacitação e Competitividade Industrial (UFFDEFESA).
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